Em entrevista, o historiador americano Robert Darton discute impacto da tecnologia sobre os livros

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Guilherme Freitas
Fonte: O Globo, 1 maio 2010.

Um dos convidados mais aguardados da edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o historiador americano Robert Darnton se viu envolvido, desde que assumiu a direção da biblioteca da Universidade de Harvard, em 2007, no complexo debate jurídico em torno do projeto do Google de criar um gigantesco acervo digital de obras de referência. Em entrevista ao GLOBO, Darnton aplaude a iniciativa, mas aponta problemas jurídicos e técnicos do projeto, que poderia dar ao Google o monopólio do acesso a obras digitais e geraria arquivos mais frágeis que microfilmes, temas abordados nos ensaios de “A questão dos livros: passado, presente e futuro” (Companhia das Letras). A discussão sobre a digitalização e as novas plataformas de leitura também está no centro de “Não contem com o fim dos livros” (Record), com lançamento previsto para 14 de maio, uma coletânea de diálogos entre o ensaísta Umberto Eco e o escritor Jean-Claude Carrière, amigos de longa data unidos pela bibliofilia. Em conversa com o GLOBO, Carrière, de 78 anos, diz que a incerteza sobre as obras digitais é apenas mais um entre os muitos momentos de renovação do livro ao longo da História e elogia a praticidade dos e-readers.

ENTREVISTA Robert Darnton

Especializado no Iluminismo francês e pioneiro no campo da história do livro, Robert Darnton dirige a biblioteca de Harvard desde 2007 e é uma das vozes mais ativas no debate sobre a digitalização de livros promovida pelo Google. Entusiasta da iniciativa, na qual vê traços do ideal iluminista da universalização do conhecimento, ele critica, porém, os termos do acordo proposto pelo Google, que criaria um “monopólio do acesso à informação”, diz. Convidado da Flip 2010, Darnton falou por telefone com O GLOBO sobre “A questão dos livros: passado, presente e futuro” (Companhia das Letras, tradução de Daniel Pellizzari, 232 pgs, R$ 42,50).

Guilherme Freitas. O GLOBO: Em A questão dos livros, o senhor aponta o risco de o acordo sobre o Google Books criar um monopólio do acesso à informação. Como o acordo constituiria esse monopólio e quais seriam as consequências?

ROBERT DARNTON: O acordo despertou uma série de protestos. O tribunal que julga o caso recebeu mais de 400 contestações formais, incluindo memorandos dos governos francês e alemão, da União Europeia, de bibliotecas de todo o mundo e do Departamento de Justiça americano. Este último alega que o acordo infringe as leis antitruste do país. Isso obrigou o Google a revisar o acordo, mas a segunda versão também foi criticada e o Departamento de Justiça manteve a maior parte de suas objeções. Este é o estado atual da questão. E acho que há uma forte possibilidade de o acordo ser rejeitado pela corte.

Se isso acontecer, o Google pode apelar, arrastando o caso por anos e continuando a digitalizar livros enquanto não houver uma decisão definitiva. É a única empresa no mundo que tem as condições financeiras e tecnológicas para isso. Mas se o acordo for mesmo rejeitado, surgiria a oportunidade para algo que defendo há anos e que acredito ser a melhor solução: a criação de uma Biblioteca Digital Nacional.

O senhor compara o acordo proposto pelo Google à estratégia usada por editoras para lucrar com a venda de assinaturas de periódicos acadêmicos.Por quê?

DARNTON: As editoras vendem assinaturas desses periódicos às bibliotecas, que oferecem aos leitores acesso livre a seus bancos de dados. No início, os preços eram muito baixos, mas logo as editoras passaram a aumentálos abusivamente, sabendo que as bibliotecas não poderiam deixar de prestar esse serviço gratuito ao público. O mesmo pode acontecer com os livros digitalizados. O Google promete cobrar um preço moderado pelo acesso das bibliotecas ao seu banco de dados, mas se as taxas subissem seria impossível reagir, pois os leitores diriam: “Não podemos ficar sem esse serviço que nos oferece milhões de livros”. O Google pede que confiemos nele. Conheço seus diretores, admiro o que estão fazendo, mas é impossível saber quem será o dono do Google daqui a dez anos. É uma empresa que existe apenas desde 1998. E mesmo que os donos continuem os mesmos, podem mudar de opinião, afinal o compromisso deles é com o lucro e com os acionistas. Precisamos negociar uma solução para essas contradições.

E o que pode ser feito para preservar o interesse público neste caso?

DARNTON: Se o acordo for aprovado, o Google poderia ser supervisionado por uma autoridade pública no que diz respeito aos preços, da mesma forma que muitas empresas são reguladas através de mecanismos que previnem preços exorbitantes.

Além disso, poderia haver representantes de bibliotecas e do público leitor no Book Rights Registry (entidade criada pelo acordo para administrar a distribuição de direitos autorais dos livros digitalizados, que atualmente conta apenas com representantes de autores e editoras). Da forma como existe hoje, o acordo é só uma forma de dividir os lucros entre o Google, as editoras e os autores. Leitores, bibliotecas e o público em geral são deixados de lado. E há ainda a questão da privacidade, que é muito grave e complexa. Controlando o acesso a essas informações, o Google saberá ainda mais sobre nós do que já sabe hoje. Mais uma vez, a empresa pede que confiemos nela. Mas isso nos causa muita preocupação, afinal uma das premissas básicas das bibliotecas é não liberar informação sobre quem lê o quê. É uma questão de direito à privacidade.

Além das questões jurídicas, o senhor aponta problemas técnicos no processo de digitalização do Google. Diz, por exemplo, que arquivos digitais muitas vezes são mais vulneráveis que microfilmes. Quais são os pontos fracos da digitalização e como podem ser melhorados?

DARNTON: As bibliotecas têm obsessão pela preservação dos textos, mas o Google não tem necessariamente o mesmo compromisso.

É claro que existe o interesse em preservar aquilo que se teve o trabalho de digitalizar, mas, como disse, interesses podem mudar com tempo. A manutenção desses arquivos custa muito dinheiro. Precisamos de algo mais do que a promessa do Google para garantir a preservação deles. O problema básico é que textos digitais também se degradam. Na biblioteca de Harvard, gastamos muito dinheiro para garantir que os arquivos sejam substituídos antes de se degradarem. Além disso, existe o risco óbvio da obsolescência de softwares e hardwares envolvidos no processo. Para combater isso, é preciso fazer upgrades constantes dos textos.

Há  ainda a dificuldade de localizar os textos digitalizados no ciberespaço. É uma questão técnica difícil de explicar, mas com os arquivos digitais é como se os dados do catálogo de uma biblioteca pudessem de uma hora para outra ficar desatualizados, criando o risco de um texto nunca mais ser encontrado. Juntando tudo isso, as dificuldades são enormes. Todos nós estamos nos esforçando para encontrar soluções. Por enquanto, temos saídas a curto prazo, que preservam os textos enquanto esperamos que um gênio da matemática apareça com respostas.

O senhor escreve que livros são mais que suportes para textos, eles corporificam o saber, e sua autoridade deriva de algo que excede a mera tecnologia que os torna possíveis. Transformações tecnológicas como a popularização dos e-readers podem mudar nossa forma de entender os livros e a leitura?

DARNTON: Menos de 2% dos leitores hoje usam e-readers, mas os equipamentos estão melhorando e é claro que vão se desenvolver até se tornarem um suporte de leitura satisfatório.

Acredito que isso pode sim mudar nossos hábitos de leitura e que os e-readers podem até suplantar os livros impressos. Dou boas-vindas a esses avanços.

Mas, como mostro em “A questão dos livros”, a cada ano mais livros são impressos no mundo, e acho que vai levar um bom tempo até vivermos numa sociedade totalmente digital. Precisamos encontrar um caminho nesse período de transição entre o livro impresso e o digital, um período que pode durar muito. A responsabilidade das bibliotecas é manter suas coleções de impressos enquanto expandem a coleção digital. Temos que fazer ambas as coisas.

O senhor se refere sempre ao ideal iluminista de uma República das Letras. Ele ainda é válido hoje? O que o senhor quer dizer com tornar real o ideal da República das Letras?

DARNTON: Passei a maior parte da vida estudando o Iluminismo e admito que fui contaminado por seus ideais. Acredito neles e os acho tocantes. A ideia de que todos devem ter acesso ao conhecimento, independentemente das condições materiais, é um princípio que deveria nos guiar. No entanto, isso era apenas um ideal no século XVIII, a realidade da época era bem diferente. O acesso ao conhecimento era mediado por muitos privilégios e barreiras sociais. Acredito que a tecnologia pode nos ajudar a superar essas barreiras. Não quero menosprezar o abismo digital que existe no mundo, há inúmeras regiões pobres onde não há sequer acesso à internet. Mas em muitos desses lugares já começaram a surgir iniciativas que tiram o melhor da comunicação eletrônica, e acredito que um dia todos poderão ter acesso a algo como a grande biblioteca digital que está sendo construída pelo Google. Para mim, este é um momento decisivo e devemos cuidar para que se privilegie o bem comum, em vez de apenas o lucro de alguns. Soa utópico?

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