O jogo intertextual entre livro
didático e outros textos: perspectivas interdisciplinares
Simone Bueno Borges da Silva
Sonia Maria Prieto Romolo Brito
Inúmeros estudos tratam dos problemas referentes ao processo
de ensino-aprendizagem no Brasil. Em meio a esse debate, há diversas
experiências escolares bem sucedidas no que diz respeito à formação de leitores
e escritores no espaço escolar. Essas experiências evidenciam a importância do
trabalho em sala de aula com os textos não didáticos.
Pensar na principal função da escola ¾ formar sujeitos
sociais leitores da realidade em que se inserem e capazes de usar a escrita
como instrumento indispensável à sua participação na construção do mundo
histórico e cultural ¾ implica garantir uma ação educacional voltada para o
desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, da sua capacidade de
interpretar/produzir construções simbólicas, para que ele se torne capaz de ler
e pronunciar o mundo[1].
Para tanto, é imprescindível que a ação pedagógica se desenvolva segundo uma
prática que contemple a utilização de materiais escritos diversificados, ou
seja, os materiais de apoio pedagógico devem constituir-se não apenas do livro
didático, mas sobretudo dos diferentes textos que circulam socialmente.
Tentar responder ao desafio de assegurar a qualidade e a
variedade dos textos que devem circular na escola, tendo em vista a formação do
leitor, exige que a discussão sobre o material pedagógico se inicie pela
reflexão em torno da concepção de leitura que irá fundamentar a ação
educacional.
1. Concepção de leitura na
perspectiva da formação do leitor
Houve um momento na história da leitura em que ler
significava pronunciar em voz alta as letras grafadas no papel[2]
. No entanto, as teorias mais recentes concebem o ato de ler como atribuição
voluntária de sentido à escrita, entendendo a leitura também como prática
social[3].
Vejamos o que alguns autores escrevem sobre o conceito de leitura:
Freire (1982) propõe uma concepção de leitura que se
distancia dos tradicionais entendimentos do termo como sonorização do texto
escrito, defendendo que a leitura começa na compreensão do contexto em que se
vive:
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior
leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser
alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o
texto e o contexto.[4]
Foucambert (1994) define a leitura como a formulação de um
juízo sobre a escrita no ato de questionar e explorar o texto na busca de
respostas - textuais e contextuais - que geram uma ação crítica do sujeito no
mundo:
Ler significa ser questionado
pelo mundo e por si mesmo, significa que certas respostas podem ser encontradas
na escrita, significa poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma
resposta que integra parte das novas informações ao que já se é.[5]
Resende (1993) também concebe a leitura como possibilidade
de abertura ao mundo e caminho para um conhecimento mais aprofundado do leitor
sobre si mesmo:
A leitura é um ato de abertura
para o mundo. A cada mergulho nas camadas simbólicas dos livros, emerge-se
vendo o universo interior e exterior com mais claridade. Entra-se no território
da palavra com tudo o que se é e se leu até então, e a volta se faz com novas
dimensões, que levam a re-inaugurar o que já se sabia antes.[6]
Numa escola em que todos os educadores se ocupassem da formação de leitores com as características que acabamos de mostrar, as atividades de leitura/escrita seriam atos libertadores, assegurando que perguntas e respostas pessoais passem a fazer parte do programa. Numa escola assim, a leitura seria um instrumento do processo de humanização, uma vez que construir sentidos significaria construir respostas pessoais para a edificação de um mundo humano, considerando nessa tarefa as idéias, os sonhos, os sentimentos e a imaginação do sujeito leitor em diálogo com outros homens.
Sabemos que inúmeros problemas vêm contribuindo para que a
escola não esteja vencendo o desafio de promover o letramento da parcela da
população que consegue chegar a ela. Tanto a evasão quanto os baixos índices de
aproveitamento escolar detectados pelos testes de avaliação do ensino básico
(SAEB) se devem, entre outros fatores, a uma compreensão equivocada e limitada
do conceito de texto. Geralmente, no contexto escolar, o texto não é concebido
como representação simbólica das produções humanas nas mais diversas práticas
sociais. Além disso, há também uma incompreensão do significado do ato de ler,
reduzido à tarefa de simples reconhecimento de um único sentido para o texto.
Tal redução, que dissocia as atividades de leitura das práticas sociais
comunicativas, acaba por produzir um “modelo escolar” de utilização do livro.
Como resultado, os atos de leitura efetivados no espaço escolar revelam-se como
singularidades estranhas, não se repetindo na vida cotidiana.
Nesse contexto, a questão dos materiais de leitura é
crucial. Trata-se, em linhas gerais, da qualidade dos textos de que o aluno
dispõe para constituir-se leitor, como veremos a seguir.
2.
O material didático e o texto não didático no ensino
É bem verdade que, na tradição da escola brasileira, o único
material escrito com que o aluno tem oportunidade de convívio prolongado é o
livro didático. Entretanto, em função de suas conhecidas limitações, a
utilização do livro didático precisa ser redimensionada de forma a assegurar
que seu uso contribua efetivamente para o alargamento da visão de mundo do
aluno, possibilitando-lhe uma leitura mais lúcida de si mesmo e do mundo que o
cerca.
Cabe ao educador, portanto, a tarefa de avaliar criticamente
o livro didático, a fim de poder superar as limitações do material pedagógico
com que trabalha. Por melhor que seja o livro didático, o educador sempre
necessitará enriquecê-lo com a crítica dos conteúdos e da abordagem dos temas
propostos, através do confronto dos posicionamentos do livro didático com
outros textos. Vejamos alguns problemas que, em geral, o livro didático
apresenta:
·
uniformização do
ensino, ignorando os diferentes contextos sócio-históricos em que se situam os
alunos, seu conhecimento prévio, sua história de vida;
·
não problematização
dos conteúdos apresentados, reforçando preconceitos e reproduzindo uma visão
estereotipada e dominante da realidade;
·
reduzida variedade de
textos (muitas vezes fragmentados), ignorando a diversidade dos modelos
textuais que circulam socialmente no mundo letrado;
·
fragmentação e
seriação dos conteúdos, determinando prévia e arbitrariamente o grau de
dificuldade que um assunto pode trazer para o aluno;
·
direcionamento da
interpretação do texto, através de exercícios que exigem respostas previsíveis
e fechadas, não permitindo ao aluno a construção dos sentidos do texto;
·
violação das
características essenciais do texto enquanto espaço para o diálogo entre autor
e leitor;
·
fragilidades e
equívocos conceituais;
·
concepção estreita do
conhecimento como produto acabado, omitindo a historicidade que perpassa a
produção do conhecimento.
Importa destacar o papel fundamental que o educador
desempenha na formação do leitor e sua responsabilidade no preenchimento das
lacunas presentes no livro didático. Além disso, a mediação do educador é
também decisiva no encaminhamento da reflexão sobre as questões fundamentais
que devem permear o cotidiano da sala de aula: o que é ler? ler para quê? ler
para quem? o que ler? como ler?. É justamente a postura crítica e aberta do
professor que possibilitará um trabalho diferenciado e com perspectivas de
sucesso. Esse posicionamento reafirma a exigência de o professor trazer para a
sala de aula os diferentes tipos de textos que circulam socialmente, sejam
textos ficcionais ou não ficcionais, uma vez que é pelo confronto com temas e
enfoques variados que o aluno vai construindo seus pontos de vista sobre as
questões vitais com que se defronta. Acreditamos que tal confronto de textos
oferece a possibilidade da emersão de um leitor crítico. Os textos ficcionais,
por exemplo, possibilitam a constituição do sujeito-cidadão, na medida em que,
além de funcionarem também como fonte de informação, estimulam e oferecem ao
aluno a possibilidade de uma leitura plural e mais abrangente, levando-o a
interrogar-se sobre si mesmo e sobre o mundo. Ao mesmo tempo, permitem a
fruição da dimensão lúdica da linguagem.
Vale destacar, também, que a formação do leitor requer um
trabalho de natureza interdisciplinar, uma vez que não se pode construir um
posicionamento crítico a partir de uma única perspectiva. Dessa forma, é
necessário que um tema, ao ser trabalhado em sala de aula, seja abordado pelos
ângulos das diversas áreas do conhecimento, a fim de permitir que idéias e
valores possam ser comparados e criticados. Isso significa que a leitura de um
texto não se esgota nele mesmo, mas deve abrir-se ao diálogo com outros textos,
estabelecendo-se um jogo intertextual indispensável ao processo de formação do
leitor.
Esse jogo intertextual estabelece, por sua vez, um jogo
interdisciplinar. Assim, um poema, por exemplo, não constitui um material de
leitura que restrito às aulas de Língua Portuguesa; pode e deve compor o
conjunto de textos trabalhados em aulas de História, Geografia, Ciências.... É
possível (e talvez muito mais agradável e produtivo) que um estudo sobre
anatomia seja inaugurado com o poema “Mapa de Anatomia: o olho”, de Cecília
Meireles. Ou que uma aula de História sobre a Região Nordeste seja enriquecida
com a leitura de Morte e vida Severina,
de João Cabral de Melo Neto. Ou que uma aula de Geografia sobre a construção do
espaço pelo homem seja trabalhada a partir da música “Sobradinho” de Sá e
Guarabira.
Para finalizar, reiteramos que a tarefa de formar leitores é
de responsabilidade dos educadores das diversas disciplinas, não apenas do
professor de Língua Portuguesa, já que a leitura é instrumento de apropriação
do conhecimento, é ferramenta que permite aprender a aprender, configurando-se
como uma atividade de ensino em todas as áreas.
[1] FREIRE, Paulo. A
importância do ato de ler. SP: Cortez, 1982
[2]
Cf. chartier,
a. m. & hebrard, j. Discurso Sobre Leitura: 1880-1980. São Paulo: Ática, 1995.
[3] Cf. Kleiman, A. B. (org.) Os Significados do Letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
[4] FREIRE, op. cit. p. 11-12.
[5] foucambert, J. A Leitura em Questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.p. 5
[6] RESENDE, Vânia Maria. Literatura Infantil e Juvenil. Vivências de leitura e expressão criadora. RJ: Saraiva, 1993. p. 164.